A ver a banda passar
A mesma banda de há pouco, desceu do coreto, vai agora a passar com ritmo de caminhada; batidas fortes agasalham os pés e dão-lhes um compasso que a vida às vezes não tem: forte, sincopado como as datas certas que afinal enredam as biografias de todos nós. Um passo para nascer, outro para ser, algum para acreditar.
Passa a banda e enquadrada a procissão, figurinhas de gesso pintado em equilíbrios nos andores floridos, mulheres e homens suados a conduzirem as padiolas como podem, e os santinhos a olharem de alto com idosos olhos de pintura a pedir restauro.
Está um sol de muitos decibéis acima da fanfarra. Pede-se água fresca para os anjinhos.
Eu paro de ler Dostoievski, uma passagem breve dos Irmãos Karamazov, para ir à janela. Mas os diálogos do escritor ficam em remoque, como se fossem também as vibrações de um bombo bem atacado por um adolescente em entusiasmos pouco piedosos: “- Acreditas na vida eterna no outro mundo, diz uma das personagens para a outra lhe responder: – Não; mas acredito na vida eterna neste mundo.
Há momentos em que o tempo para de repente para dar lugar à eternidade.”
Permaneço à janela, Dostoievsky e eu, medindo os passos dos que vão na procissão, admirando o cuidado com que alguns vestiram roupas novas e alindaram os penteados, vejo as colchas que nas janelas cumprimentam santos e santidade, o que temos de mais irreprimível pode ser uma coisa assim, um aperto de afetos, os indivíduos desejando-se acima de si mesmos, uma paz na terra e seres humanos de boa vontade, e bonecos de gesso a precisar de pintura nova, pautas decoradas e uma ou outra desafinada fífia, água partilhada e o coro das gentes a festejar o dia de sol, como se mais nada houvesse para lá deste contágio bom, de boa literatura feita sobre as pedras de uma calçada gasta, em momentos que o tempo para de repente e a força do contágio é tão forte, que até Dostoievsky e eu cantamos à janela.
Alexandre Honrado
Historiador